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COLAR CERVICAL INVERTIDO [Socorrismo]
Publicado dia 30/08/2020 (lido 3370 vezes)
Por que vemos profissionais colocando o colar cervical invertido?
Em vários vídeos, vemos pessoal da área de Saúde, socorristas, profissionais do SAMU, etc. colocar numa vítima o colar cervical na posição errada. Claro, na frente da telinha o internauta não resiste e comenta: "...uma incompetência assim, puxa vida, é um absurdo, é preciso ter melhor formação!" etc. etc.

Alguns sites citam que, numa novela da emissora de maior audiência no Brasil, um socorrista colocou o colar cervical "de cabeça para baixo". E a reação a um programa do governo relançou este fenômeno, com vídeos em que socorristas identificados como "médicos Cubanos" colocam um colar cervical fora de posição. Além do fato que nada nesses vídeos novos demonstra que os socorristas eram realmente médicos ou Cubanos, até agora nada explica por que esse erro acontece.

Considerando o que é um colar cervical, é preciso admitir que trata-se de um equipamento de uma simplicidade desconcertante, e que sua colocação é fácil. Que uma pessoa não saiba fazer uma operação de coração a peito aberto ou a retirada de uma parte de um pulmão, ok! É fácil de entender, porque uma operação assim é complicada. Mas colocar um colar cervical é simples demais!
Além disso, as pessoas filmadas colocando o colar invertido têm, todas, sem nenhuma exceção, a capacidade física e intelectual para colocá-lo corretamente.
E isso implica que nós, diante da tela, tão seguros de nossa competência, estamos sem dúvida sujeitos a colocar o colar invertido um dia ou outro... Então, é preciso continuar a procurar, para entender o porquê deste erro.

A formação

Podemos imaginar que essas pessoas foram mal formadas. Mas o problema é que quase todo o pessoal da área de Saúde, inclusive o SAMU, passam por uma formação equivalente. Se nós temos alguns vídeos mostrando um erro de posicionamento, deduzimos logicamente que o nível global é ruim e que na tela está a parte visível do problema. Resumindo:

o colar em si mesmo é um equipamento muito simples
a colocação também é muito simples
enfermeiras, enfermeiros, médicos, etc... são pessoas que têm todas, globalmente, o mesmo nível intelectual e de capacidade física
a formação é globalmente idêntica ou, pelo menos, se há diferenças elas são insignificantes e não têm impacto no caso de um equipamento e de uma técnica tão simples


Nossa dedução lógica é, ao mesmo tempo, desconcertante: nós teríamos no nosso país pessoas do mesmo nível intelectual, com a mesma formação, que arriscam todos, um dia ou outro, de colocar o colar cervical "de cabeça para baixo". Simplesmente, elas não são todas filmadas, e a chegada do Facebook ou Youtube não muda coisa nenhuma quanto à posição errada: essas mídias "mostram", só isso, e nos levam a descobrir um problema que já existia.
Você, leitor deste artigo, enfermeiro(a), trabalhando no SAMU, por exemplo, não é mais bobo nem mais inteligente do que o socorrista no vídeo. Mesma formação, mesmo material... Ou seja: mesmo risco. É motivo para começar a se fazer algumas perguntas, não é mesmo?

Risco ou hábito?

Vamos começar diferenciando "risco de colocar o colar invertido" e "hábito de colocar o colar invertido". Sejamos lógicos: cada pessoa formada, num momento ou outro de sua formação, colocou o colar diante do formador. E o formador avaliou o que o aluno fazia, então podemos supor que todas as pessoas filmadas colocando o colar de forma incorreta já o colocaram corretamente em curso. Difícil imagimar que um formador aprove um aluno que coloca o colar como nós vemos nos vídeos. Em outras palavras, não estamos diante de socorristas que colocam SEMPRE o colar incorretamente, mas sim em presença de socorristas que, nessa vez, diante da câmera, colocaram o colar invertido.

Isso significa que existe uma diferença entre a formação e o que aconteceu na realidade. Um detalhe, um ponto preciso foi esquecido em formação e aconteceu no socorro, levando a este posicionamento errado.

O colar é simples ou não?

Vamos observar com atenção um colar. Ele está disponível visualmente em 3 formas.

Primeiro caso: estendido, ou seja, desdobrado, aberto e sem fixar a parte da frente.
Nesse caso, é fácil ver que o colar é assimétrico. Na Europa, geralmente é assim que ele é arrumado nos veículos: estendido, numa sacola comprida. No Brasil, os Sapadores-Bombeiros os arrumam assim também. Então, o Sapador-Bombeiro deve tirar o colar da sacola e montá-lo. Pode-se dizer que a montagem exige alguns segundos, que montar e desmontar danifica mais rápido os colares... Mas com colares de qualidade razoável, isso não é problema, arrumá-los estendidos é mais fácil... mas o principal é que o socorrista vê o colar nesta forma assimétrica.

Segundo caso: montado mas não fechado. Visualmente, a assimetria do colar diminui seriamente. O colar ocupa mais espaço do que se estivesse totalmente aberto, não dá mais para arrumá-lo numa sacola e, como ele está aberto, o velcro se suja. É uma solução muito ruim.

Terceiro caso: fechado. É o que nós encontramos geralmente nas ambulâncias Brasileiras. Para pegá-los mais rapidamente, os socorristas montam e fecham os colares ao redor da barra no alto do salão do paciente. O colar fica num local potencialmente contaminado. Mas o principal é que, visualmente, ele se torna simétrico, mesmo não sendo. Observando colares de várias marcas, em geral é a mesma coisa: quando estão fechados, fica muito mais difícil determinar qual é a parte de baixo e a de cima.
O modo de arrumação do colar então é um ponto que vai agravar a situação. Tanto é que nos vídeos com a colocação incorreta quase sempre é um outro socorrista que entrega o colar, fechado, a quem vai colocá-lo. O socorrista que vai colocar o colar recebe um objeto que visualmente parece simétrico, mas que de fato não é. Além disso, o fato de quem coloca o colar vê-lo de muito perto dificulta ainda mais visualizar a diferença.

O tamanho do colar

Se a colocação do colar é um ponto essencial, notemos principalmente que a medida do tamanho é um pré-requisito. Existem de fato vários tamanhos de colares e convém escolher o que melhor se adapta. Ora, aqui também, a moda no jeito de arrumar o colar tem um impacto. Se os colares são pré-montados, a gente não mede: A gente pega o primeiro que chega na mão, testa e, se não serve, a gente pega um outro.
O modo de fazer então é "escolha, colocação, teste, escolha, colocação, teste". Ao contrário, quem arruma seus colares esticados, num saco, entende rapidamente que precisa medir antes de colocar o colar, senão vai perder muito tempo. De fato, ele trabalha diferentemente: "medida, escolha, montagem, colocação".
Este modo de fazer parece mais longo, mas tem duas vantagens:
A colocação será feita apenas uma vez, com o tamanho certo. Por sua vez, o modo "escolher, colocar, testar" leva a colocar parcialmente um colar, retirá-lo, pegar outro, até achar o correto, aumentando os riscos de movimento intempestivo da vítima, que frequentemente não é bem mantida. Tanto é que, nos vídeos com a colocação invertida, há frequentemente tentativa de colocar um colar, retirada deste e colocação de um outro. De fato, o socorrista percebe que há um problema, mas pensa (em alguns micro-segundos) que é o tamanho que está errado. Porque, se a gente olhar bem, o socorrista não mede. É lógico: o primeiro colar é apresentado, fechado, e quando ele não é bem colocado, alguém lhe passa imediatamente um segundo colar. De quebra, isso pode contaminar os colares que não serão usados! A impossibilidade de colocar o colar é associada, de forma lógica e falsa, a um problema de tamanho, porque:

  • o socorrista não fez a medida
  • alguém lhe dá um outro colar

Pior, já que a gente pensa que o primeiro não serviu por causa do tamanho, a gente pega o segundo mas evita pedir ainda um outro. De fato, é o que acontece no nosso dia a dia: nós podemos recusar a primeira proposta, mas temos mais dificuldade para recusar a segunda.

A outra vantagem de arrumar os colares desmontados é que a medida leva alguns segundos, bem como a retirada da sacola e a montagem. Isso permite acalmar-se um pouco mais, ajudando a distinguir perfeitamente o sentido do colar.

O sentido de colocação

Mesmo que esses micro-detalhes de ergonomia não expliquem totalmente a colocação incorreta, dá para ver que eles aumentam progressivamente o risco de errar.
O ponto sobre o qual nós insistimos há algumas linhas é que o colar não é simétrico, mas parece ser. Ora, uma pessoa é simétrica: seu perfil direito é idêntico a seu perfil esquerdo (em todo caso, no assunto que tratamos neste artigo, ele é suficientemente idêntico para ser considerado como simétrico). Coloque-se ao lado de uma vítima deitada. De que lado está a cabeça dela? A resposta é simples: depende!
A cabeça da vítima pode estar à nossa direita ou à nossa esquerda.

Ora, quando você foi formado para colocar o colar cervical, na maioria dos casos a vítima foi apresentada a você com a cabeça à sua esquerda. O gesto, que você viu o formador fazer e que você também fez, sempre foi o mesmo: Você pegou o colar, colocou a parte que fica sob a nuca da vítima, empurrando esta parte para a frente [frente de você]. Em seguida, você colocou a parte superior do colar abaixo do queixo, empurrando essa parte para sua frente, depois você levantou a fixação que estava debaixo da nuca, puxando a fixação na sua direção.
O colar que você colocou está bem colocado, mas você não sabe colocar um colar cervical.

Na verdade, se nós viramos a vítima e a apresentamos a você com a cabeça para a direita e você faz exatamente o mesmo gesto, o colar será colocado... "de cabeça para baixo".
Porque quando a vítima está com a cabeça para a sua direita, você não deve empurrar a fixação por baixo da nuca da vítima. É preciso enfiar a fixação no outro sentido, ou seja, trazendo-a para você. Ou senão, colocar-se do outro lado da vítima.
O colar sendo apresentado fechado, você não viu a sua assimetria, e não teve o tempo da montagem para observar com um pouco mais de calma. Então você simplesmente repetiu um gesto, sem entender que ele é bom em 50% dos casos reais. Mas ele é correto em 100% dos casos de formação, porque a formação mostrou apenas uma parte dos casos, e não todos.

O posicionamento do socorrista e as lindas calças brancas
No caso do vídeo dos "médicos Cubanos", o médico permanece de pé e atrás da vítima. Ele recebe o colar fechado. Ou seja, todos os elementos para que o posicionamento seja errado!
Para colocar corretamente um colar, é preciso que o socorrista posicione-se ao lado da vítima, de joelhos. De joelho no chão? Com uma linda calça branca de médico? Mais um elemento que não favorece a posição. Quando você está vestido de branco, você não deita no chão, não se ajoelha: você fica em pé, para se manter limpo. E neste caso, você fica numa posição que aumenta o risco de colocar mal o colar.

Sapadores-Bombeiros

Nas corporações de Sapadores-Bombeiros, tentamos acertar todos esses detalhes, um por um.

  • O uniforme é reforçado nos joelhos. Não há desculpa para evitar trabalhar na posição correta.
  • Os colares são arrumados desmontados, numa sacola fechada. Aumento da higiene, facilidade de transporte, necessidade de medir para escolher o colar certo, montagem calma.
  • Equipe de 4 socorristas na ambulância. Então, há um socorrista para a cabeça, que só faz isso: segurar a cabeça, o que deixa um pouco mais de tempo para fazer tudo o que é necessário.
  • Aprendizagem de vários métodos para segurar a cabeça, permitindo não atrapalhar a colocação do colar.
  • O socorrista que coloca o colar frequentemente é ajudado por um outro socorrista, que afasta as roupas da vítima para uma melhor fixação.
  • Competências equivalentes de todos os membros da equipe. Não há "o médico que sabe", ou seja, alguém a quem os outros teriam um pouco de medo de dizer "você colocou o colar invertido".


Todas as formações dos Sapadores-Bombeiros são feitas em turmas bem pequenas (6 a 8 alunos) e grande número de formadores (2 a 4 por grupo de alunos). A colocação do colar é dividida em duas sequências: uma que explica a medida, a montagem e a escolha do sentido, a segunda sequência que explica a colocação. Cada aluno realiza cada exercício várias vezes, com os formadores cuidando de mudar a posição das vítimas, evitando assim o gesto automático de colocação, automatismo cujo resultado os vídeos mostram bem.

Conclusão

Se colocar um colar cervical parece fácil, a realidade mostra que o sucesso depende de vários pequenos detalhes. Os formadores nos Sapadores-Bombeiros, com formação em pedagogia, conhecem os possíveis problemas de uma demonstração aparentemente simples.
Ainda mais sabendo que posicionar uma vítima numa prancha não é, no conjunto, mais difícil do que colocar um colar cervical, podemos questionar a qualidade geral do socorro e o nível de formação: Se todo mundo acha que consegue colocar um colar, e também que consegue colocar a vítima na prancha, transportá-la, fazer massagem cardíaca, etc... mas se a formação relativa ao simples colar cervical não é adequada (o que constatamos assistindo os vídeos...) por que a formação seria boa no restante? Temos certeza da qualidade das aulas? Não seria uma qualidade ilusória?

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